Obedeço a todos os teus preceitos e testemunhos, pois conheces todos os meus caminhos.
Salmos 119.168
A onisciência é o atributo divino pelo qual Deus conhece perfeitamente todas as coisas — passadas, presentes e futuras — em todos os lugares e de forma simultânea, sem esforço, sem mediação, sem limitação. O salmista não apenas compreendia esse atributo, mas dele extraía uma consciência profunda: nada do que faz, diz ou sequer pensa escapa à penetração do olhar divino. Como não render-se Àquele que nos perscruta até o mais íntimo? Que conhece não apenas nossas ações, mas os caminhos ocultos do coração — quem fomos, quem somos, quem seremos; com quem nos atrelamos, o que amamos, tememos, desejamos e até aquilo que ousamos imaginar? Pode-se desobedecer a Deus, sim — mas é impossível esquivar-se de Seu olhar incandescente, que atravessa e ilumina até o lugar mais oculto e escuro de nosso coração.
Se Deus nos vê por inteiro, talvez a postura mais autêntica não seja a tentativa vã de parecer virtuosos, mas o movimento corajoso de confrontar nossa condição real — marcada por vaidade, desejos ambíguos, fragilidades e misérias. Ainda assim, viver sob esse olhar não deve ser entendido como uma exigência moral externa, mas como um chamado à existência verdadeira, onde cada gesto assume a forma de resposta diante d’Aquele que tudo sonda. Não para obter aprovação, como se Deus operasse sob os critérios humanos, mas porque talvez seja nesse embate silencioso com o olhar eterno que algo em nós — obscurecido pela repetição, pela defesa e pelo medo — comece, enfim, a despertar. Aí se inicia a busca pelo bem essencial, que não nasce da vontade humana, mas da presença que nos convoca.
Vivemos tão condicionados a demonstrar ostensivamente virtudes — para os outros, para nós mesmos e até diante de Deus — que nos esquecemos do princípio mais elementar da antropologia cristã: não somos ontologicamente (em essência) bons. A simulação da santidade é não apenas vã, mas espiritualmente estéril. Diante de Deus, toda tentativa de parecer justo é desmascarada antes mesmo de ser articulada. O que nos cabe, então, não é sustentar um moralismo de fachada, mas desejar, com temor e tremor a “purificação do coração” — um anseio sincero, ainda que imperfeito, por conformar-se à forma de Cristo, o arquétipo da ética cristã vivida em plenitude.
Nosso foco moderno na mera “mudança de atitudes” revela uma incompreensão estrutural da dinâmica espiritual. Uma autêntica conversão profunda não se inicia com o esforço voluntarista, mas com a rendição interior, com o despojamento do ego. Não se trata de melhorar comportamentos, mas de morrer para o homem velho, para que o Espírito dê forma ao novo. É obra da graça, não do autocontrole. Somos transformados não porque nos dominamos, mas porque nos deixamos refazer. E esse refazimento exige menos técnicas e mais silêncio; menos estratégias e mais entrega; menos performance e mais cruz.
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