Confissão de Augsburg
Prefácio
Invictíssimo Imperador, César augusto, Senhor clementíssimo.
Porquanto Vossa Majestade Imperial convocou uma dieta imperial para Augsburg,
destinada a deliberar sobre esforços bélicos contra o turco, adversário
atrocíssimo, hereditário e antigo do nome e da religião cristãos, isto é, sobre
como se possa resistir ao seu furor e ataques com preparação bélica durável e
permanente; e depois também quanto às dissensões com respeito a nossa santa
religião e fé cristã, e a fim de que neste assunto da religião as opiniões e
sentenças das partes, presentes umas às outras, possam ser ouvidas, entendidas
e ponderadas entre nós, com mútua caridade, brandura e mansidão, para que,
corrigido o que tem sido tratado incorretamente nos escritos de um e outro
lado, possam essas coisas ser compostas e reduzidas a uma só verdade simples e
concórdia cristã, de forma tal, que, quanto ao mais, seja praticada e mantida
por nós uma só religião pura e verdadeira; e para que, assim como todos estamos
e militamos sob um mesmo Cristo, possamos da mesma forma viver em uma só igreja
cristã, em unidade e concórdia; e porque nós, os abaixo assinados, assim como
os outros eleitores, príncipes e ordens, fomos chamados à supramencionada
dieta, prontamente viemos a Augsburg, a fim de nos sujeitarmos obedientes ao
mandado imperial, e, queremos dizê-lo sem intuito de jactância, estivemos entre
os primeiros a chegar.
Como, entretanto, Vossa Majestade Imperial também, aqui em
Augsburg, no próprio início desta dieta, fez que, entre outras coisas, se indicasse
aos eleitores, aos príncipes e a outras ordens do Império que as diversas
ordens do Império, por força do edito imperial, deveriam propor e submeter suas
opiniões e juízos nas línguas alemã e latina, e como quarta-feira passada, após
deliberação, se respondeu, em seguida, a Vossa Majestade Imperial que de nossa
parte submeteríamos os Artigos de nossa Confissão sexta-feira próxima, por
isso, em obediência à vontade de Vossa Majestade Imperial, oferecemos, nesta
matéria da religião, a confissão de nossos pregadores e de nós mesmos, tal qual
eles, haurindo da sagrada Escritura e da pura palavra de Deus, ensinaram essa
doutrina até hoje entre nós.
Agora, se os demais leitores, príncipes e ordens do Império
igualmente apresentarem, de conformidade com a precitada indicação de Majestade
Imperial, em escritos latinos e germânicos, sua opiniões na questão religiosa,
estamos dispostos, com a devida obediência a Vossa Majestade Imperial, como
nosso Senhor clementíssimo, a conferir, amigavelmente, com os precitados
príncipes, nossos amigos, e com as ordens, sobre vias idôneas e toleráveis, a
fim de que cheguemos a uma acordo, até onde tal se possa fazer honestamente, e,
discutida a questão entre nós, dessa maneira, com base nos propostos escritos
de ambas as partes, pacificamente, sem contenda odiosa, possa a dissensão, com
a ajuda de Deus, ser dirimida e haja retorno a uma só verdadeira e concorde
religião. Assim como todos estamos e militamos sob o mesmo Cristo, devemos
outrossim confessar um só Cristo, segundo o teor de edito de Vossa Majestade
Imperial, e todas as coisas devem ser conduzidas em acordo com a verdade de
Deus, e pedimos a Deus com ardentíssimas preces que auxilie esta causa e dê a
paz.
Se, porém, no que diz respeito aos demais eleitores, príncipes
e ordens, que constituem a outra parte, esse tratamento da causa não se
processar segundo o teor de edito de Vossa Majestade Imperial, e ficar sem
fruto, nós outros em todo o caso deixamos o testemunho de que nada retemos que
de algum modo possa conduzir a que se efetue uma concórdia cristã possível de
fazer-se com Deus e de boa consciência, como também Vossa majestade Imperial, e
bem assim os demais eleitores e ordens do Império, e quantos forem movidos por
sincero amor e zelo pela religião, quantos derem ouvidos a essa causa com
equanimidade, dignar-se-ão, bondosamente, a reconhecer e entender dessa
Confissão nossa e dos nossos.
Como Vossa Majestade Imperial também bondosamente
significou, não uma, senão muitas vezes, aos eleitores, príncipes e ordens do
Império, e na Dieta de Espira, celebrada em 1526 A. D., fez que fosse lido e
proclamado, de acordo com a forma dada e prescrita de Vossa imperial instrução,
que Vossa Majestade Imperial, nesse assunto de religião, por certas razões, que
então foram alegadas, não queria decidir, mas queria empenhar-se junto ao
Romano Pontífice a favor da reunião de um concílio, conforme também essa
questão foi mais amplamente exposta, faz um ano, na próxima-passada Dieta de
Espira, onde Vossa Majestade Imperial, por intermédio do Governante Fernando,
rei da Boêmia e da Hungria, clemente amigo e Senhor nosso, e além disso através
do embaixador e dos comissários imperiais, fez que, entre outras coisas, fosse
apresentado, segundo a instrução, o seguinte: que Vossa Majestade Imperial
notara e ponderara a resolução do representante de Vossa Majestade Imperial no
Império, bem como do presidente e dos conselheiros do regime imperial, e dos
legados de outras ordens que se reuniram em Ratisbona, concernente à reunião de
um concílio geral, e que Vossa Majestade Imperial, outrossim, julgara que seria
útil reunir um concílio, e que Vossa Majestade Imperial não duvidou de que
seria possível induzir o Pontífice Romano a celebrar um concílio geral,
porquanto as questões que então eram tratadas entre Vossa Majestade Imperial e
o Romano Pontífice avizinhavam-se de uma concórdia e reconciliação cristã. Por
isso Vossa Majestade Imperial bondosamente significava que se empenharia no
sentido de que o Romano Pontífice consentisse, o quanto antes possível, em
congregar tal concílio, através da emissão de cartas.
Se, pois, o resultado for tal, que essas dissensões não
sejam compostas amigavelmente entre nós e a outra parte, oferecemos aqui, de
superabundância, em toda obediência perant e Vossa Majestade Imperial, que
haveremos de comparecer e defender a causa em tal concílio geral, cristão e
livre, para cuja reunião sempre tem havido, em razão de gravíssimas
deliberações, em todas as convenções imperiais celebradas durante os anos de
reinado de Vossa Majestade Imperial, magno consenso da parte dos eleitores,
príncipes e ordens do Império. Para esse concílio e para Vossa Majestade
Imperial mesmo já anteriormente apelamos da maneira devida e na forma da lei,
nessa questão, incontestavelmente a maior e mais grave. A esse apelo
continuamos a aderir. E não intentamos nem podemos abandoná-lo, por esse ou
outro documento, a menos que a causa fosse amigavelmente ouvida e levada a uma
concórdia cristã, de acordo com o teor da citação imperial. Quanto a isso, também
aqui testificamos publicamente.
Introdução
"Todo aquele que me confessar diante dos homens, também
eu o confessarei diante de meu Pai que está nos céus; mas aquele que me negar
diante dos homens, também eu o negarei diante de meu Pai que está nos céus"
(Mt 10,32s). Estas palavras de Jesus nos dizem o que é uma confissão
"confissão" é dizer sim ou não para Jesus Cristo, tomar partido em
favor de Jesus ou contra ele. Confissão é discipulado. Uma tal confissão quer
ser a Confissão de Augsburg que, neste ano de 1980, está comemorando 450 anos.
Ela é, ao lado da Sagrada Escritura e do Catecismo Menor de Martin Lutero, o
documento básico, através do qual expressamos o que Jesus Cristo é para nós. A
Confissão de Augsburg é também aquele escrito que permitiu entre nós, aqui no
Brasil, o surgimento da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil.
Éramos, originalmente, quatro igrejas independentes (o Sínodo Riograndense, o
Sínodo Evangélico de Santa Catarina e Paraná, a Igreja Evangélica Luterana no
Brasil e o Sínodo do Brasil Central) que descobriram a sua unidade na Sagrada
Escritura, no Catecismo Menor de Lutero e na Confissão de Augsburg. Desde 1949
nós confessamos a nossa fé em Jesus, conjuntamente, através da Confissão de
Augsburg.
As palavras da Confissão de Augsburg foram escritas em uma
situação bem especial. Todos nós conhecemos a Martin Lutero e sabemos que por
causa de uma descoberta que ele fez, por volta de 1517, toda a situação
religiosa na Alemanha ficou bastante agitada. Lutero descobriu que Deus não é
um Deus que quer que o homem morra, mas viva! Deus não quer condenar, mas
salvar o homem. Quando fez esta descoberta, o reformador não ficou com isso
para si. Ele a anunciou. Sua descoberta se alastrou como pólvora por toda a
Alemanha. Sempre que o Evangelho se liberta, não há mais quem o segure. Ele
tomou conta do apóstolo Paulo, de Santo Agostinho, de Lutero e de milhares de
contemporâneos de Lutero.
Onde o Evangelho age, também surgem mudanças. E, na Alemanha
começaram a ocorrer mudanças. A partir do Evangelho se ia descobrindo novas
realidades. Surgiu uma nova concepção de igreja, de santo ceia, houve
casamentos de pastores, monges abandonavam conventos. Com isso ocorriam
mudanças. A Alemanha se via dividida em dois campos, os adeptos da velha e da
nova fé. O culto passou a ser oficiado em língua alemã, havia santa ceia sob
duas espécies, comunidades escolhendo seus pastores. O povo criava novos hinos,
onde se cantava da liberdade trazida por Deus em Cristo. Muitos cristãos, lendo
a Bíblia e encontrando a proibição de imagens, foram mais longe e começaram a
destruir imagens, altares, etc.
Esta liberdade significava perigo para os cristãos da nova
fé. Desde o século VI, fé católica e fidelidade ao Estado eram uma e a mesma
coisa. Quem passava a ensinar coisa diferente daquela que até agora fora
ensinada, em questões de fé, era herege e, ao mesmo tempo, traidor da pátria.
Por algum tempo, porém, puderam ocorrer mudanças no campo religioso, na
Alemanha, porque o Imperador Carlos V, o homem que tinha que zelar pela
fidelidade política e religiosa, estava empenhado em lutas com seus dois
principais opositores: o Papa e o rei da França. Em 1529 a coisa, porém, mudou.
Neste ano Carlos V venceu a seus opositores e anunciou, por carta, aos
príncipes alemães a convocação de uma Dieta, i.é., uma reunião dos
representantes dos principados e cidades que formavam o Império Alemão. Esta
Dieta ocorreria na cidade de Augsburg e deveria iniciar a 8 de abril de 1530. O
Imperador vinha disposto a "reparar o ultraje que fora feito a
Cristo". Na sua opinião as mudanças feitas, a partir do Evangelho, pelos
adeptos da nova fé, eram um ultraje a Cristo. Atrasos na viagem do Imperador
fizeram com que a Dieta só se iniciasse em junho de 1530.
Quando o príncipe eleitor da Saxônia, - território onde
Lutero residia e que tinha na cidade de Wittenberg sua capital, -recebeu a
convocação para a Dieta, procurou entrar em contato com seus partidários. Eram
eles Felipe de Hesse, Ernesto de Lüneburg, Jorge de Ansbach, Henrique de Mecklenburg
e Wolfgang de Anhalt. Nas cartas enviadas, João, o Constante, -é este o nome do
príncipe eleitor da Saxônia - procurou mover seus partidários a se fazerem
presentes na Dieta, para justos poderem difundir e defender a fé evangélica. As
respostas não foram muitas alentadoras, pois mostravam que não havia
unanimidade de pensamento. Enquanto alguns viam a importância da Dieta na
defesa da "fé e do sacramento", outros julgavam ser mais importante
quebrar a hegemonia política do Imperador. Também entre as cidades não havia
unanimidade. Essa situação era perigosa. Diante da inatividade de seus
partidários, o príncipe eleitor encarregou a Universidade de Wittenberg com a
elaboração de um documento no qual fosse responsabilizadas as mudanças havidas
na Igreja em seu território. Este documento recebeu o nome de "Artigos de
Torgau".
Quando se dirigiu para a Dieta de Augsburg, o príncipe João,
o Constante, levou consigo, entre outros conselheiros, a Felipe Melanchthon,
colaborador de Lutero e professor na Universidade de Wittenberg. Lutero não
pode ir junto por estar banido. Como o Imperador tardasse em chegar a Augsburg,
João, o Constante, encarregou Melanchthon de elaborar um novo escrito que
abrangesse os Artigos de Torgau e outros escritos anteriores. Este escrito nós
conhecemos, hoje, sob o nome de Confissão de Augsburg. Em maio de 1530 o
escrito foi enviado a Lutero que a ele se referiu da seguinte maneira: "Eu
li a apologia (defesa) de Malanchthon, a qual me satisfaz e eu nada sei como
melhorá-la ou modificá-la, o que também não conviria, já que eu não consigo
manifestar-me de modo tão manso e suave. Cristo, nosso Senhor, ajude que ela
traga grandes frutos, como nós esperamos e pedimos."
Em 15 de junho de 1530 o Imperador entrou em Augsburg. No
dia seguinte era festa de Corpus Christi. Os príncipes evangélicos negaram-se a
obedecer a ordem do Imperador de participar da procissão. Foi um ato de
coragem, mas também de perigosa desobediência. A chegada do Imperador fez com
que os príncipes evangélicos que ainda vacilavam em princípios de 1530, se
unissem agora, assumindo em conjunto o documento de Melanchthon.
Carlos V quis que o documento fosse simplesmente entregue.
Os príncipes, porém, quiserem confessar sua fé publicamente e conseguiram que o
documento fosse lido perante toda a Dieta. Essa leitura ocorreu no dia 25 junho
de 1530, às 15 horas. O texto foi lido em latim e em alemão. Após a leitura, o
imperador proibiu a divulgação do texto. Mas, em pouco tempo ele era divulgado
em toda a Alemanha.
Ao saber do ocorrido, Lutero viu cumpridas as palavras do
Salmo 119.46: "Falarei dos teus testemunhos na presença dos reis, e não me
envergonharei".
A Confissão de Augsburg é uma pública confissão de fé, uma
confissão do senhorio de Jesus Cristo. A confissão como tal foi apresentada em
hora de perigo. Ali, em Augsburg, nossos pais luteranos fizeram uma pública
confissão de fé, de sua fé em Jesus Cristo.
O Imperador não aceitou o documento, mas ele veio a ser a
base para as igrejas luteranas na Alemanha e, hoje, em todo o mundo, também
aqui entre nós no Brasil.
A confissão de Augsburg abrange ao todo 28 Artigos que estão
divididos em duas partes. Na primeira parte deparamo-nos com "Artigos de
fé e de doutrina" (Artigos 1-21). Eles se ocupam com três questões
básicas:
a. Os Artigos 1-3 pretendem demonstrar a concordância com a
doutrina da Igreja Antiga a respeito de Deus (1), origem do pecado (2) e
cristologia (3).
b. Nos Artigos 4-6 e 18-20 é apresentada a compreensão
reformatória do Evangelho: Justificação (4), ministério da pregação (5) (seria
mais correto se o Artigo fosse intitulado de "meditação do Espírito Santo,
através de Palavra e Sacramento"), nova obediência (6), livre arbítrio e
origem do pecado (18-19), fé e boas obras (20).
c. Nos Artigos 9-15 deparamo-nos com problemas relativos à
Igreja: Conceito de Igreja (7-8), sacramentos (9-13) (note-se que aqui a
confissão e o arrependimento estão incluídos entre os sacramentos, sem, no
entanto, serem declarados sacramentos), ordem e ritos eclesiásticos (14-15).
Além dessas três questões básicas, encontramos ainda três
questões específicas: autoridades civis (16), segunda vinda de Cristo para
juízo (17), culto aos santos(21).
Na segunda parte (Artigos 22-28) deparamo-nos com
"Artigos sobre que há divergência e em que se trata dos abusos que foram
corrigidos": Das duas espécies do sacramento (22), Do matrimônio dos
sacerdotes (23), Da Missa (24),da Confissão (25), Da distinção de manjares
(26), dos votos monásticos (27), Do poder eclesiástico (28). No final são
abordados sumariamente, temas como indulgências, peregrinações, excomunhão,
etc.
Martin Dreher
Artigo 1 - De Deus
As igrejas ensinam
entre nós com magno consenso que o decreto do Concílio de Nicéia sobre a
unidade da essência divina e sobre as três pessoas é verdadeiro e deve ser
crido sem qualquer dúvida. A saber: que há uma só essência divina, a qual é
chamada Deus e é Deus, eterno, incorpóreo, impartível, de incomensurável poder,
sabedoria, bondade, criador e conservador de todas as coisas, visíveis e
invisíveis. E contudo há três pessoas, da mesma essência e poder, e co-eternas:
o Pai, o filho e o Espírito Santo. E a palavra "pessoa" usam-na no
sentido em que a usaram, nesta questão, os escritores eclesiásticos, para
significar não uma parte ou qualidade em outra coisa, mas aquilo que subsiste
por si mesmo.
Condenam todas as
heresias surgidas contra esse Artigo, como por exemplo os maniqueus, que punham
dois princípios, um bom e um mau; também os valentinianos, arianos, eunomianos,
maometanos e todos os outros a eles semelhantes. Condenam, outrossim, os
samosatenos, antigos e novos, os quais, ao sustentarem que existe apenas uma
pessoa, retoricam astuta e impiamente sobre o Verbo e o Espírito Santo, dizendo
que não são pessoas distintas, porém que "Verbo" significa palavra
falada, e "Espírito", um movimento criado nas coisas.
Artigo 2 - Do Pecado Original
Ensinam também que
depois da queda de Adão (Gn3) todos os homens, propagados segundo a natureza,
nascem com pecado, isto é, sem temor de Deus, sem confiança em Deus, e com
concupiscência, e que essa enfermidade ou vício original verdadeiramente é
pecado, que condena e traz morte eterna ainda agora aos que não renascem pelo
batismo e pelo Espírito Santo.
Condenam aos
pelagianos e a outros que negam seja pecado o vício original e que, diminuindo
a glória do mérito e dos benefícios de Cristo, argumentam que o homem pode ser
justificado diante de Deus por forças próprias, da razão.
Artigo 3 - Do Filho
de Deus
Ensinam outrossim
que o Verbo, isto é, o Filho de Deus, assumiu a natureza humana no seio da
bem-aventurada Virgem Maria. De sorte que há duas naturezas, a divina e a
humana, inseparavelmente conjungidas na unidade da pessoa, um só Cristo,
verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem, que, nascido da Virgem Maria,
veramente sofreu, foi crucificado, morreu e foi sepultado, a fim de
reconciliar-nos com o Pai e ser um sacrifício, não só pela culpa original, mas
ainda por todos os pecados atuais dos homens. Também desceu ao inferno e
verdadeiramente ressuscitou no terceiro dia. Depois subiu ao céu, para
assentar-se à desta do Pai, perpetuamente reinar e dominar sobre todas as
criaturas, e santificar os que nele crêem, pelo envio, aos seus corações, do
Espírito Santo, que os reja, console, vivifique, e os defenda contra o diabo e
o poder do pecado. O mesmo Cristo voltará visivelmente, a fim de julgar os
vivos e os mortos, etc., de acordo com o Símbolo dos Apóstolos.
Artigo 4 - Da Justificação
Ensinam também que
os homens não podem ser justificados diante de Deus por forças, méritos ou
obras próprias, senão que são justificados gratuitamente, por causa de Cristo,
mediante a fé, quando crêem que são recebidos na graça e que seus pecados são
remitidos por causa de Cristo, o qual através de sua morte fez satisfação pelos
nossos pecados. Essa fé atribui-a Deus como justiça aos seus olhos. Rm 3 e 4.
(Especialmente 3, 21ss e 4,5)
Artigo 5 - Do
Ministério Eclesiástico
Para que alcancemos
essa fé, foi instituído o ministério que ensina o evangelho e administra os
sacramentos. Pois mediante a palavra e pelos sacramentos, como por
instrumentos, é dado o Espírito Santo, que opera a fé, onde e quando agrada a
Deus, naqueles que ouvem o evangelho. Isto é, que Deus, não em virtude de
méritos nossos, mas por causa de Cristo justifica os que crêem serem recebidos
na graça por amor de Cristo. Gl3: "a fim de que recebêssemos pela fé a
promessa do Espírito".
Condenam aos
anabatistas e a outros que pensam vir o Espírito Santo aos homens sem a palavra
externa, através de suas próprias preparações e obras.
Artigo 6 - Da Nova
Obediência
Ensinam também que
aquela fé deve produzir bons frutos e que é necessário se façam as boas obras
ordenadas por Deus, por causa da vontade de Deus, não para confiarmos que
merecemos por essas obras a justificação diante de Deus. Pois a remissão dos
pecados e a justificação são apreendidas pela fé, como também testifica a
palavra de Cristo: "Quando tiverdes feito tudo isso, dizei: Somos servos
inúteis." A mesma coisa ensinam também os antigos escritores
eclesiásticos. Pois Ambrósio diz: "Foi estabelecido por Deus que quem crê
em Cristo é salvo sem obra, pela fé somente, recebendo a remissão dos pecados
de graça."
Artigo 7 - Da
Igreja
Ensinam outrossim
que sempre permanecerá uma santa igreja. E a igreja é a congregação dos santos
na qual o evangelho é pregado de maneira pura e os sacramentos são
administrados corretamente. E para a verdadeira unidade da igreja basta que
haja acordo quanto à doutrina do evangelho e à administração dos sacramentos.
Não é necessário que as tradições humanas ou os ritos e cerimônias instituídos
pelos homens sejam semelhantes em toda a parte. Como diz Paulo: "Uma só
fé, um só batismo, um só Deus e Pai de todos", etc. (Ef4,4s.)
Artigo 8 - Que é a
Igreja?
Ainda que a igreja,
propriamente, é a congregação dos santos e verdadeiramente crentes, contudo,
visto que nesta vida muitos hipócritas e maus lhe estão misturados, pode
fazer-se uso dos sacramentos administrados por maus, segundo a palavra de
Cristo: "Na cadeira de Moisés estão sentados os escribas e os
fariseus," etc. Tanto os sacramentos quanto a palavra são eficazes por
causa da ordenação e do mandado de Cristo, mesmo quando administrados por maus.
Condenam os
donatistas e outros a eles semelhantes, os quais negavam fosse lícito fazer uso
do ministério de maus na igreja e julgavam que o ministério dos maus era inútil
e ineficaz.
Artigo 9 - Do
Batismo
Do batismo ensinam
que é necessário para a salvação, que pelo batismo é oferecida a graça de Deus,
e que devem ser batizadas as crianças, as quais, oferecidas a Deus pelo
batismo, são recebidas na graça de Deus.
Condenam os
anabatistas, que desaprovam o batismo infantil e afirmam que as crianças são
salvas sem o batismo.
Artigo 10 - Da Ceia
do Senhor
Da ceia do Senhor
ensinam que o corpo e sangue de Cristo estão verdadeiramente presentes e são
distribuídos aos que comungam na ceia do Senhor. E desaprovam os que ensinam de
maneira diferente.
Artigo 11 - Da
Confissão
Da confissão
ensinam que a absolvição particular deve ser mantida nas igrejas, ainda que na
confissão não é necessária a enumeração de todos os delitos, pois tal é
impossível, segundo o Salmo: "Os delitos, quem os discerne?" (Sl19,12)
Artigo 12 - Do
Arrependimento
Do arrependimento
ensinam que os caídos depois do batismo podem alcançar a remissão dos pecados a
qualquer tempo, quando se convertem, e que a igreja deve conceder a absolvição
a tais que voltam ao arrependimento. Mas o arrependimento consiste,
propriamente, nas duas partes seguintes: uma é a contrição, ou os terrores
metidos na consciência pelo reconhecimento do pecado; a outra é a fé, que nasce
do evangelho, ou absolvição, e crê que os pecados são perdoados por causa de
Cristo, consola a consciência e libera dos terrores. Depois devem seguir-se
boas obras, que são os frutos do arrependimento.
Condenam os
anabatistas, que negam possam perder o Espírito Santo os que já uma vez foram
justificados; também os que argumentam chegarem alguns, nesta vida, a perfeição
tal, que não podem pecar.
São condenados
outrossim os novacianos, que não queriam absolver os que, caídos depois do
batismo, retornaram à penitência.
Rejeitam-se ainda
os que não ensinam alcançar-se a remissão dos pecados pela fé, ordenando-nos,
ao contrário, que mereçamos a graça mediante satisfações nossas.
Artigo 13 - Do Uso
dos Sacramentos
Do uso dos
sacramentos ensinam que os sacramentos foram instituídos não apenas para serem
notas de profissão entre os homens, porém, mais, a fim de serem sinais e
testemunhos da vontade de Deus para conosco, propostos para despertar e
confirmar a fé nos que deles fazem uso. Os sacramentos, por isso, devem ser
usados de modo que se junte a fé, a qual crê nas promessas que são oferecidas e
mostradas pelos sacramentos.
Artigo 14 - Da
Ordem Eclesiástica
Da ordem
eclesiástica ensinam que ninguém deve publicamente ensinar na igreja ou
administrar os sacramentos a menos que seja legitimamente chamado.
Artigo 15 - Dos
Ritos Eclesiásticos
Dos ritos
eclesiásticos ensinam que devem ser conservados aqueles usos que podem ser
conservados sem pecado e são úteis à tranqüilidade e à boa ordem na igreja,
tais como certos feriados, festas e coisas semelhantes.
Com respeito a tais
coisas, entretanto, admoestam-se os homens que não se onerem as consciências,
como se tal culto fosse necessário à salvação.
Também se admoestam
os homens que tradições humanas instituídas para tornar a Deus propício,
merecer a graça e satisfazer pelos pecados adversam o evangelho e a doutrina da
fé. Razão por que votos e tradições concernentes a comidas, dias, etc.
Instituídos com a finalidade de merecerem a graça e satisfazerem pelos pecados,
são inúteis e contrários ao evangelho.
Artigo 16 - Das
Coisas Civis
Das coisas civis
ensinam que ordenações civis legítimas são boas obras de Deus e que é lícito
aos cristãos exercer ofícios civis, ser juízes, julgar segundo as leis
imperiais e outras leis vigentes, impor penas segundo o direito, fazer, segundo
o direito, guerra, prestar serviço militar, fazer contratos legais, possuir
propriedade, jurar por ordem dos magistrados, ter esposa, casar-se.
Condenam os
anabatistas, que interdizem essas coisas civis aos cristãos.
Também condenam os
que põem a perfeição evangélica não no temor de Deus e na fé, porém na fuga aos
negócios civis. Porque o evangelho ensina a justiça eterna do coração.
Entrementes, não
destrói a ordem estatal ou familiar, senão que exige muitíssimo que sejam
preservadas como ordenações de Deus, e que se exerça, em tais ordenações, o
amor. Por isso os cristãos devem necessariamente obedecer aos seus magistrados
a às leis, a menos que exijam se peque, pois neste caso devem obedecer mais a
Deus do que a homens. Atos 5.
Artigo 17 - Da
Volta de Cristo para o Juízo
Ensinam, outrossim,
que na consumação do mundo Cristo aparecerá para o juízo e ressuscitará todos
os mortos. Aos piedosos e eleitos dará a vida eterna e perpétuas alegrias; mas
aos homens ímpios e aos diabos condenará, para serem atormentados sem fim.
Condenam os
anabatistas, os quais pensam que os castigos dos homens condenados e dos diabos
terá um fim.
Condenam também os
outros, que agora difundem opiniões judaicas: que antes da ressurreição dos
mortos os piedosos tomarão posse do reino do mundo, sendo os ímpios subjugados
em toda a parte.
Artigo 18 - Do
Livre Arbítrio
Sobre o livre
arbítrio ensinam que a vontade humana tem certa liberdade para operar justiça
civil e escolher entre as coisas sujeitas à razão. Não tem, entretanto, a força
para operar, sem o Espírito Santo, a justiça de Deus, ou a justiça espiritual,
porque o homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus. Essa
justiça, porém, se realiza nos corações quando, pela palavra, é recebido o Espírito
Santo. É o que diz, em outras tantas palavras, Agostinho, no Livro III do
Hypognosticon: "Concedemos que todos os homens têm livre arbítrio, que
inclui o juízo racional, não, porém, no sentido de que seja capaz, nas coisas
que dizem respeito a Deus, a começá-las sem Deus ou seguramente completá-las,
mas tão-somente nas obras desta vida, quer boas, quer más. Por obras boas
entendo as que se originam do bem natural, isto é, querer trabalhar no campo,
querer comer e beber, querer ter um amigo, querer possuir vestimenta, querer
construir uma casa, querer esposa, criar gado, aprender algo de apreciável em
diversas artes boas, querer o que quer de bom pertencente a esta vida. Tudo
isso não subsiste sem o governo de Deus. Na verdade, dele e por ele são e principiaram
a ser. Por obras más entendo coisas tais como querer render culto a um ídolo,
querer cometer homicídio", etc.
Artigo 19 - Da
Causa do Pecado
Da causa do pecado
ensinam que, conquanto Deus cria e conserva a natureza, contudo a causa do
pecado é a vontade dos maus, a saber, do diabo e dos ímpios. A vontade, quando
não auxiliada por Deus, desvia-se de Deus, conforme diz Cristo, em João 8:
"Quando ele profere a mentira, fala do que lhe é próprio".
Artigo 20 - Da Fé e
das Boas obras
Os nossos são
acusados falsamente de proibirem as boas obras. Pois os seus escritos
publicados sobre os Dez Mandamentos, e outros de conteúdo semelhante, atestam
que têm ensinado, proveitosamente, sobre todos os gêneros e deveres da vida,
indicando que formas de vida e obras, em qualquer vocação, agradam a Deus.
Pouco ensinavam, antigamente, os pregadores a respeito dessas coisas. Insistiam
apenas em obras pueris e desnecessárias, tais como guardar certos dias
feriados, determinados jejuns, fraternidades, peregrinações, culto de santos,
rosários, monasticismo e coisas semelhantes. Os nossos adversários, admoestados
a respeito, já abandonam essas coisas, nem pregam sobre essas coisas inúteis da
forma em que o faziam anteriormente. Até começam a mencionar a fé, sobre a qual
outrora havia estranho silêncio. Ensinam que somos justificados não por obras
somente, porém unem fé e obras, e dizem que somos justificados pela fé e pelas
obras. Essa doutrina é mais tolerável do que a anterior, e pode trazer mais
consolação que sua doutrina antiga.
Como, pois, a
doutrina da fé, que deve ser a principal na igreja, por tempo tão longo jazeu
ignorada - sobre a justiça da fé, conforme todos devem reconhecer, houve o mais
profundo silêncio nos sermões, havendo-se tratado na igreja apenas da doutrina
das obras-, os nossos instruíram as igrejas da seguinte maneira sobre a fé:
Em primeiro lugar,
que as nossas obras não podem reconciliar a Deus ou merecer a remissão dos
pecados e a graça. Conseguimos isso, ao contrário, somente pela fé, quando
cremos que somos recebidos na graça por causa de Cristo, o qual, ele só, foi
posto como mediador e propiciação. Por ele o Pai é reconciliado. Aquele, pois,
que confia merecer graça por obras, despreza o mérito e a graça de Cristo, e
procura o caminho a Deus sem Cristo, através da força humanas, quando Cristo
disse a respeito de si: "Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida."
Essa doutrina da fé
é tratada em toda a parte em Paulo. Assim, em Efésios 2: "Pela graça
fostes salvos, mediante a fé, e isso não vem das obras", etc.
E para não
acontecer que alguém sofisme dizendo que inventamos nova interpretação de
Paulo, note-se que toda essa questão tem testemunhos dos Pais. Agostinho, em
muitos volumes, defende a graça e a justiça da fé contra os méritos das obras.
E de modo semelhante ensina Ambrósio no De vocatione gentium e em outros
lugares. No De vocatione gentium diz assim: "Sem valor tornar-se-ia a redenção
pelo sangue de Cristo, nem ficaria abaixo da misericórdia de Deus a primazia
das obras dos homens, se a justificação, que se dá pela graça, fosse devida a
méritos precedentes, de modo que não seria presente do doador, porém salário
daquele que trabalha".
Ainda que essa
doutrina seja desprezada pelos inexperientes, todavia, consciências piedosas e
pávidas experimentam que ela traz muitíssimo consolo, porque as consciências
não podem ser tranqüilizadas por qualquer obra, mas tão-somente pela fé, quando
estão certas de que por causa de Cristo têm um Deus reconciliado, conforme
ensina Paulo, em Romanos 5 (v. 1): "Justificados mediante a fé, temos paz
com Deus." Toda essa doutrina deve ser referida àquele conflito da
consciência aterrorizada. E sem essa luta nem se pode entendê-la. Razão por que
são maus juízes nessa matéria homens inexperimentados e profanos, os quais
sonham que a justiça cristã outra coisa não é senão justiça civil ou
filosófica.
Anteriormente
vexavam-se as consciências com a doutrina das obras. Não ouviam o consolo do
evangelho. A alguns a consciência impediu ao deserto, a mosteiros, esperando
que aí haveriam de merecer a graça pela vida monástica. Outros inventavam
outras obras para merecer a graça e satisfazer pelos pecados. Por isso foi muito
necessário anunciar e renovar essa doutrina da fé em Cristo, a fim de que às
consciências assombradas não faltasse o consolo, mas soubessem que pela fé em
Cristo são apreendidas a graça e a remissão dos pecados.
Os homens também
são advertidos de que aqui a palavra "fé’ não significa apenas
conhecimento histórico, tal como existe nos ímpios e no diabo. Significa,
porém, fé que não crê unicamente na história, mas também no efeito do que
aconteceu, a saber, neste Artigo: a remissão dos pecados, isto é, que por
Cristo temos graça, justiça e remissão dos pecados.
Agora, quem sabe
que por Cristo tem um Pai propício, este verdadeiramente conhece a Deus, sabe
que Deus tem cuidado dele, o invoca, em suma, não está sem Deus, como os
gentios. Pois os demônios e os ímpios não podem crer nesse Artigo da remissão
dos pecados. Por isso odeiam a Deus como a inimigo, não o invocam, nada de bom
dele esperam. Também Agostinho adverte o leitor dessa maneira quanto à palavra
"fé", e ensina que nas Escrituras não se entende o termo
"fé", no sentido de "conhecimento", tal como existe nos
ímpios, mas no sentido de "confiança" que consola e erige as mentes
aterrorizadas.
Ensinam os nossos,
além disso, que é necessário praticar boas obras, não para confiarmos que
através disso merecemos graça, mas porque é a vontade de Deus. Somente pela fé
são apreendidas a remissão dos pecados e a graça. E visto receber-se pela fé o
Espírito Santo, imediatamente se renovam os corações e recebem novos afetos,
por forma que podem produzir boas obras. Pois é assim que diz Ambrósio: "A
fé é a mãe da vontade boa e da ação justa." Pois sem o Espírito Santo as
forças humanas estão cheias de afetos ímpios, e são muitos fracas para efetuar
obras boas aos olhos de Deus. Além disso, estão no poder do diabo, que impele
os homens a multiformes pecados, a opiniões ímpias, a manifestos crimes. É o
que se pode ver nos filósofos, que, embora hajam tentado viver vida honesta,
contudo não lograram fazê-lo, porém se contaminaram com muitos crimes
manifestos. Tal é a fragilidade do homem quando está sem fé e sem o Espírito
Santo e se governa apenas com forças humanas.
Facilmente se vê
daí que essa doutrina não deve ser acusada de proibir boas obras, senão que
muito antes se deve louvá-la, porque mostra como podemos fazer boas obras. Pois
sem a fé a natureza humana de modo nenhum pode fazer as obras do primeiro e
segundo mandamentos. Sem a fé não invoca a Deus, nada espera de Deus, não
carrega a cruz, mas busca auxílio humano e nele confia. Assim sendo, quando
falta a fé e a confiança em Deus, todas as cobiças e conselhos humanos reinam
no coração. Razão por que também Cristo disse: "Sem mim nada podeis
fazer" João 15 (v. 5). E a igreja canta: Sem o teu poder Nada há no homem,
Nada há de puro.
Artigo 21 - Do
culto aos Santos
Do culto aos santos
ensinam que se pode lembrar a memória dos santos, a fim de lhes imitarmos a fé
e as obras de acordo com a vocação, assim como o Imperador pode imitar o
exemplo de Davi em fazer guerra, para impedir que os turcos invadam a pátria.
Pois um e outro são reis. A Escritura, porém, não ensina que invoquemos os
santos ou peçamos auxílio deles, porque nos propõe um só, Cristo, como
mediador, propiciador, sumo sacerdote e intercessor. É a ele que se deve
invocar, e ele prometeu que haveria de ouvir as nossas preces. E esse culto
aprova-o muitíssimo, a saber, que seja invocado em todas as aflições. 1João 2
(v. 1): "Se alguém pecar, temos Advogado junto a Deus," etc.
Esta é, mais ou
menos, a suma da doutrina entre nós. Pode-se ver que nela nada existe que
divirja das Escrituras, ou da igreja católica, ou da Igreja Romana, até onde
nos é conhecida dos escritores. Assim sendo, julgam duramente os que requerem
sejam os nossos tidos por hereges. A dissensão toda diz respeito a alguns
poucos abusos, que se infiltraram nas igrejas sem autoridade certa. E mesmo
nessas coisas, suposto haja alguma discrepância, convinha, todavia, tivessem os
bispos clemência bastante para tolerar os nossos em virtude da confissão que
agora apresentamos. Porque nem mesmo os cânones são tão duros, a ponto de
exigirem que os ritos sejam os mesmos em toda a parte. E jamais foram similares
os ritos de todas as igrejas, ainda que entre nós os ritos antigos em grande
parte são diligentemente observados. Pois é falso e calúnia isso de que todas
as cerimônias, todas as instituições antigas sejam abolidas em nossas igrejas.
Mas houve queixa pública de que certos abusos ineriam aos ritos populares.
Esses, porque não podiam ser aprovados de boa consciência, foram corrigidos em
certa medida.
Artigo 22 - Artigos
Em Que Se Recenseiam Os Abusos Mudados
Visto as igrejas
entre nós não dissentirem da igreja católica em nenhum Artigo de fé,
abandonando apenas uns poucos abusos que são novos e foram aceitos contra a
intenção dos cânones, por defeito dos tempos, rogamos que a Majestade Imperial
ouça com clemência tanto o que foi mudado, como quais foram as razões, a fim de
que não se coaja o povo a observar aqueles abusos contra a consciência. E não
dê a Majestade Imperial crédito àqueles que, para inflamar o ódio dos homens
contra os nossos, disseminam espantosas calúnias entre o povo. Irritando, dessa
maneira, no início, o ânimo de homem de bem, deram ocasião a essa controvérsia,
e agora, com a mesma arte, procuram aumentar a discórdia. Ora, a Majestade
Imperial sem dúvida há de certificar-se de que a forma da doutrina e das
cerimônias entre nós é mais tolerável do que a que homens iníquos e malévolos
descrevem. E não se pode coligir a verdade a partir dos rumores vulgares ou das
maledicências de inimigos. Fácil é, porém, julgar que nada contribui mais para
a conservação da dignidade das cerimônias e o crescimento da reverência e da
piedade no povo do que a correta observância das cerimônias nas igrejas.
Artigo 22 - Das
Duas Espécies
Na ceia do Senhor
dão-se aos leigos as duas espécies do sacramento, porque este uso tem
mandamento do Senhor. Mt 26(v. 27): "Bebei dele todos". Aqui Cristo
manifestamente preceituou, a respeito do cálice, que todos bebam.
E para evitar que
alguém pudesse cavilar dizendo que isto se refere apenas aos sacerdotes, Paulo,
em Coríntios (1Co11, 20ss), cita um exemplo do qual se torna evidente que a
igreja toda fez uso de ambas as espécies. E por longo tempo continuou esse uso
na igreja, não se sabendo quando ou por quem foi primeiramente mudado, ainda
que o cardeal Cusano indica quando foi aprovado. Cipriano (+258) testifica, em
vários lugares, que o sangue foi dado ao povo. Testifica a mesma coisa Jerônimo
(340/50-420), o qual diz: "Os sacerdotes administram a eucaristia e
distribuem o sangue de Cristo ao povo". Na verdade, o papa Gelásio
(492-496) ordena que não se divida o sacramento Dist.2 de consecratione,
capítulo Comperimus. Apenas um costume que não é lá muito antigo procede de
maneira diferente. É certo, entretanto, que um costume introduzido
contrariamente aos preceitos de Deus não deve ser aprovado, conforme testificam
os cânones, Dist 8, c. Veritate e seguintes. Mas esse costume foi recebido não
só contra a Escritura, senão também contra os cânones antigos e o exemplo da
igreja. Razão por que ninguém que haja preferido receber o sacramento sob ambas
as espécies devera ter sido coagido a fazê-lo de outra maneira, com ofensa à
consciência. E visto a divisão do sacramento não acordar com a instituição de
Cristo, é costume entre nós omitir a procissão que até agora tem estado em uso.
Artigo 23 - Do
Matrimônio dos Sacerdotes
Houve queixa
pública sobre o mau exemplo de sacerdotes que não eram continentes. Informa-se
por isso também o papa Pio teria dito que houvera algumas razões por que os
sacerdotes foram privados do matrimônio, mas que havia razões de muito mais
peso por que se deveria restituir-lho. É assim que escreve Platina. Como, pois,
os sacerdotes entre nós queriam evitar aqueles escândalos públicos, casaram e
ensinaram que lhes era lícito contrair matrimônio. Em primeiro lugar, porque
Paulo diz: "Por causa da impureza, cada um tenha a sua própria
esposa." (1co 7,2) Também: "É melhor casar do que viver
abrasado." (1Co 7,9) Em segundo lugar, Cristo diz: "Nem todos são
aptos para receber este conceito." (Mt 19,11) Com isso ensina que nem
todos os homens são idôneos para o celibato, porque Deus criou o homem para a
procriação Gn 1 (v.17). Nem está no poder do homem modificar a criação sem
singular dom e obra de Deus. Por isso, aqueles que não são idôneos para o
celibato, devem contrair matrimônio. Pois nenhuma lei humana, nenhum voto podem
anular um mandamento de Deus e uma ordenação de Deus. Por essas razões os
sacerdotes ensinam que lhes é lícito casar.
Consta que também
na igreja os sacerdotes eram homens casados. Pois também Paulo diz que se deve
eleger para bispo alguém que esteja casado. E na Alemanha os sacerdotes
coagidos pela força ao celibato pela primeira vez há mais de quatrocentos anos.
Tanto, porém, resistiram, que o arcebispo de Mogúncia, quando anunciou que
publicaria o edito do Romano Pontífice sobre essa questão, quase foi morto num
tumulto pelos sacerdotes enfurecidos. E a coisa foi executada de maneira tão
rude, que não apenas foram proibidos casamentos futuros, senão ainda
dissolvidos, contra todo direito divino e humano, contra os próprios cânones,
feitos não só pelos pontífices, mas pelos mais celebrados concílios, casamentos
já existentes.
E, visto que nesse
mundo senescente a natureza humana, a pouco e pouco, se torna mais frágil,
importa se providencie para evitar que mais vícios penetrem furtivamente na
Alemanha.
Além disso, Deus
instituiu o matrimônio para que fosse remédio da fraqueza humana. Os próprios
cânones dizem que, de vez em quando, o rigor antigo deve ser relaxado em tempos
ulteriores, por causa da fragilidade dos homens. É de se desejar que tal se
faça também nessa questão. Parece também que as igrejas algum dia estarão sem
pastores se o casamento ficar proibido por mais tempo.
Visto, pois,
existir o mandamento de Deus, visto ser conhecido o costume da igreja, visto um
celibato impuro produzir muitos escândalos, adultérios e outros crimes dignos
de castigo da parte de bons magistrados, é estranhável o fato de em coisa
nenhuma se exercer mais crueldade do que contra o matrimônio de sacerdotes.
Deus ordenou que se honrasse o matrimônio; as leis de todos os estados bem
constituídos, mesmo entre os gentios, o adornaram com as mais elevadas honras.
Mas agora homens são torturados com penas capitais, até mesmo sacerdotes,
contrariamente à intenção dos cânones, por nenhum outro motivo senão o
casamento. Doutrina de demônios chama Paulo a que proíbe o casamento 1Tm 4 (v.
1.3). Facilmente se pode entender isso agora, quando a proibição do casamento é
mantida com tais penalidades.
Todavia, assim como
nenhuma lei humana pode anular um mandamento de Deus, da mesma forma também um
voto não pode anular o preceito divino. Assim também Cipriano aconselha se
casem as mulheres que não guardam a castidade prometida. Suas palavras, no
primeiro livro de suas cartas, epístola 11, são as seguintes: "Se, porém,
não querem ou não podem perseverar, é melhor que casem do que caírem no fogo
por sua volúpia; certamente não devem causar nenhum escândalo a seus irmãos ou
irmãs."
E os cânones usam
de certa eqüidade para com os que fizeram voto antes da idade justa, conforme
até agora geralmente se costumou fazer.
Artigo 24 - Da
Missa
Nossas igrejas são
acusadas falsamente de abolirem a missa. Pois a missa é mantida entre nós e
celebrada com a máxima reverência. Também são conservadas quase todas as
costumeiras cerimônias. Apenas são intercalados, aqui e acolá, entre os hinos
latinos, hinos alemães, adicionados para ensinar o povo. Pois cerimônias são
necessárias principalmente para ensinar os imperitos. E Paulo ordenou que na
igreja se faça uso da língua compreendida pelo povo. Acostumou-se o povo a
receber o sacramento em conjunto, sempre que haja pessoas preparadas. Também
isso aumenta a reverência e a devoção das cerimônias públicas. Pois ninguém é
admitido a menos que antes seja examinado e ouvido. Advertem-se também as
pessoas sobre a dignidade e o uso do sacramento, e o grande consolo que leva a
consciências assombradas, a fim de aprenderem a crer em Deus e de Deus
esperarem e lhe pedirem tudo o que é bom. Esse culto é agradável a Deus, tal
uso do sacramento alimenta o amor a Deus. Não parece, por conseguinte, que a
missa é celebrada entre os adversários com mais devoção que entre nós.
Consta, entretanto,
que durante muito tempo houve, da parte de todos os homens de bem, queixa
públicas e muitíssimo séria também a este respeito: que as missas eram
torpemente profanadas, postas a serviço da obtenção de dinheiro. E não é
segredo a extensão que esse abuso assumiu em todos os templos, por que espécie
de pessoas missas são celebradas apenas por causa do pagamento ou doações,
quantos celebram contrariamente à proibição dos cânones. Mas Paulo ameaça
gravemente aos que tratam a missa de forma indigna ao dizer: "Aquele que
comer este pão ou beber o cálice do Senhor, indignamente, será réu do corpo e
do sangue do Senhor." (1Co11,27). Quando, em vista disso, os nossos
sacerdotes foram admoestados a respeito desse pecado, terminaram entre nós as
missas privadas, já que não se celebravam quase nenhuma missas particulares que
não fosse rezadas por causa de ganho.
E os bispos não
desconheciam essas abusos. Se os tivessem corrigido em tempo, haveria menos
dissensão agora. Anteriormente permitiram, com sua dissimulação, que muitos
vícios se infiltrassem na igreja, quando é tarde, começam a lamuriar obre as
calamidades da igreja. Acontece, porém que o presente tumulto não se originou
em outra coisa senão naqueles abusos, os quais eram tão manifestos, que não se
podia tolerá-los por mais tempo. Surgiram grandes dissensões sobre a missa,
sobre o sacramento. Talvez o mundo deva sofrer por profanação tão longa da
missa, profanação que toleraram na igreja, por tantos séculos, aqueles que a
poderiam e deveriam ter corrigido. Pois no Decálogo está escrito: "Quem
tomar o nome de Deus em vão, não ficará impune". (Ex 20,7). Ora, desde o
princípio do mundo nenhuma coisa divina jamais parece ter sido mal-usada com fins
de ganho de tal maneira como a missa.
Acrescentou-se uma
opinião que multiplicou as missas particulares ao infinito, a saber, que
Cristo, com sua paixão, fizera satisfação pelo pecado original e instituíra a
missa, na qual se faria oblação pelos pecados cotidianos, os mortais e os
veniais. Daí surgiu a opinião pública de que a missa é obra que apaga os
pecados dos vivos e dos mortos em virtude da obra realizada. Assim se começou a
discutir sobre se uma missa, rezada por muitos, valia tanto quanto a missa
particular rezada por indivíduos. Esse debate gerou aquela quantidade infinita
de missas.
Com respeito a
essas opiniões os nossos advertiram que elas dissentem das Sagradas Escrituras
e lesam a glória da paixão de Cristo. Pois a paixão de Cristo foi oblação e
satisfação não só pela culpa original, mas ainda pelos demais pecados, conforme
está escrito na Epístola aos Hebreus: "Temos sido santificados mediante a
oferta do corpo de Jesus Cristo, uma vez por todas". (Hb 10,10) Da mesma
forma: "Com uma única oferta aperfeiçoou para sempre quantos estão sendo
santificados." (Hb 10,14)
Ensina também a
Escritura que somos justificados diante de Deus pela fé em Cristo. Agora, se a
missa tira os pecados dos vivos e dos mortos pela obra realizada, então se
alcança a justificação da obra da missa, não da fé, o que a Escritura não
tolera.
O que acontece é
que Cristo ordena o façamos em memória dele. Razão por que a missa foi
instituída com a finalidade de a fé, naqueles que fazem uso do sacramento,
recordar quais os benefícios recebidos mediante Cristo, e erguer e consolar a
consciência apavorada. Pois recordar a Cristo é recordar os benefícios e sentir
que verdadeiramente são oferecidos a nós. E não basta recordar a história,
porque isso também o podem recordar os judeus e os ímpios. A missa, portanto,
deve realizar-se a fim de nela ser administrado o sacramento àqueles que
necessitam de consolo, como diz Ambrósio: "Visto que sempre peco, sempre
devo tomar remédio."
Como, pois, a missa
é tal comunhão do sacramento, conserva-se entre nós uma só missa comum para
cada dia santo e também para outros dias. Se alguns querem receber o
sacramento, administra-se o sacramento aos que o pedem. E esse costume não é
novo na igreja. Pois os antigos, de antes de Gregório, não fazem menção de
missa privada. Da missa comum falam muitas vezes. Diz Crisóstomo (354-407):
"Diariamente o sacerdote está junto ao altar, e a alguns chama à comunhão,
a outros recusa". E dos cânones antigos se vê que uma só pessoa celebrava
a missa, e dela os demais presbíteros e diáconos recebiam o corpo do Senhor.
Pois é assim que rezam as palavras do cânone niceno (325): "Os diáconos,
segundo a ordem, recebam, do bispo ou do presbítero, a sagrada comunhão, depois
dos presbíteros". E Paulo ordena, com respeito à comunhão, que uns esperem
pelos outros, a fim de que a participação seja comum. (1 Co 11,21)
Visto, pois, que à
luz da Escritura e dos Pais, a missa, entre nós, tem o exemplo da igreja,
confiamos que não pode ser desaprovada, especialmente tendo em vista que são
conservadas cerimônias públicas em sua maior parte semelhantes às usuais.
Apenas é dessemelhante o número de missas. Quantos a ele, por causa dos mui
grandes e manifestos abusos, certamente seria vantajosos moderá-lo. Pois
antigamente, onde quer que fosse, não se rezava missa diariamente nem mesmo nas
igrejas mais freqüentadas, conforme atesta a História Tripartida, no livro
nono: "Por outro lado, contudo, em Alexandria é às quartas e sextas-feiras
que as Escrituras são lidas e os doutores as interpretam e faz-se tudo sem o
solene costume do sacrifício".
Artigo 25 - Da
Confissão
A confissão não
está abolida em nossas igrejas. Pois não se costuma dar o corpo do Senhor a não
ser àqueles que previamente foram examinados e absolvidos. E o povo é instruído
diligentissimamente sobre a fé na absolvição, a respeito da qual antes de
nossos tempos houve profundo silêncio. Ensina-se aos homens que tenham a
absolvição em alto apreço, porque é a voz de Deus e é pronunciada por ordem de
Deus. Louva-se o poder das chaves e lembra-se quão grande conforto leva às
consciências aterrorizadas, e que Deus requer a fé para que creiamos nessa
absolvição como sua voz que soa do céu, e que essa fé verdadeiramente alcança e
recebe a remissão dos pecados. Em tempos anteriores, as satisfações foram
postas em evidência imoderadamente. Menção nenhuma se fazia da fé, e do mérito
de cristo, e da justiça da fé. Razão por que nessa questão nenhuma culpa se
deve dar a nossas igrejas. Pois até os nossos adversários reconhecem que a doutrina
do arrependimento é tratada e apresentadas pelos nossos de maneiras
diligentíssima.
Mas da confissão
ensinam que não é necessária a enumeração dos pecados e que as consciências não
devem ser oneradas com o cuidado de enumerar todos os pecados, pois é
impossível mencionar todos os pecados, como atesta o Salmo: "Quem há que
possa discernir as próprias faltas?" (Sl 19,12) E Jeremias: "Corrupto
é o coração do homem e inescrutável". (Jr 17,9) Se, porém. Nenhum pecado
fosse perdoado a não ser o que se conta, as consciências jamais poderiam
aquietar-se, porque muitos pecados a gente não vê, nem se podem recordá-los.
Também os escritores antigos atestam que aquela enumeração não é necessária. No
Decreto cita-se Crisóstomo, que diz o seguinte: "Não te digo que te
exponhas em públicos ou que te acuses junto a outros, porém quero que obedeças
ao profeta, que diz: ‘Revela o teu caminho diante de Deus.’ Confessa, portanto,
os teus pecados, em oração, diante de Deus, o verdadeiro juiz. Dize as tuas
faltas não com a língua, porém com a memória de tua consciência." E a
glosa sobre a penitência, distinção quinta, no capítulo Considere, admite que a
confissão é de direito humano. Todavia a confissão é mantida entre nós, por
causa do grandíssimo benefício da absolvição, como também por causa de outros
proveitos para as consciências.
Artigo 26 - Da
Distinção de Comidas
Foi persuasão
comum, não só do povo, mas também dos que ensinavam nas igrejas, que distinções
entre comidas e semelhantes tradições humanas são obras úteis para merecer
graça e satisfazer por pecados. E que o mundo pensou assim evidencia-se do fato
de que diariamente se instituíam novas cerimônias, novas ordens, novos dias
santos, novos jejuns, e do fato de que os mestres nos templos exigiam essas
obras como culto necessário para merecer graça e muito aterrorizavam as
consciências quando omitiam algo. Dessa persuasão quanto às tradições provieram
muitos males da igreja.
Em primeiro lugar,
obscureceu-se com isso a doutrina sobre a graça e a justiça da fé, que é a
parte principal do evangelho, e que deve existir e ter eminência na igreja
acima de tudo, a fim de se reconhecer bem o mérito de Cristo, e para que a fé,
que crê serem os pecados perdoados por causa de Cristo, seja posta muito acima
e sobre todos os outros cultos. Essa também é a razão por que Paulo se aplica
ao máximo nesse Artigo, remove a lei e as tradições humanas, a fim de mostrar
que a justiça cristã é algo diverso de obras dessa natureza, a saber, é a fé
que crê sermos recebidos na graça por causa de Cristo. Mas essa doutrina de
Paulo foi quase totalmente abafada pelas tradições, que geraram a opinião de
que se deve merecer a graça e a justiça por distinções entre comidas e cultos
semelhantes. No arrependimento, menção nenhuma se fazia da fé. Apenas se
propunham essas obras de satisfação. Julgava-se que nisso consistia todo o
arrependimento.
Em segundo lugar,
essas tradições obscureceram os mandamentos de Deus, porque eram postas muito
acima dos preceitos divinos. Julgava-se que o cristianismo todo consistia na
observação de certos dias santos, ritos, jejuns, vestimenta. Essas observâncias
estavam na posse do honradíssimo título de serem a vida espiritual e a vida
perfeita. Enquanto isso, os mandamentos de Deus segundo a vocação nenhum louvor
recebiam: que o pai educava os filhos, que a mãe dava à luz, que o príncipe
regia o país. Essas obras eram consideradas mundanas e imperfeitas, e muitos
inferiores àquelas esplêndidas. E esse erro torturou muito a consciências
piedosas. Afligiam-se porque tinha de ficar em gênero imperfeito de vida, no
casamento, no governo ou outras funções civis. Admiravam os monges e criaturas
que tais, e julgavam, erroneamente, que as observâncias daqueles eram mais
agradáveis a Deus.
Em terceiro lugar,
as tradições trouxeram grande perigos para as consciências, pois era impossível
observar todas as tradições, e mesmo assim os homens julgavam que essas
observâncias eram cultos necessários. Escreve Gérson que muitos ficaram
desesperados e que alguns até se suicidaram, porque entendiam que não poderiam
cumprir as tradições. E, enquanto isso, ainda não tinham ouvido nenhum consolo
da justiça da fé e da graça. Vemos que os sumistas e os teólogos coligem as
tradições e procuram abrandamentos para aliviar as consciências. Todavia, não
libertam suficientemente, senão que por vezes enredam as consciências mais
ainda. E as escolas e sermões estiveram tão ocupados em coligir tradições, que
não houve tempo para tomar a Escritura e inquirir sobre uma doutrina mais útil
a da fé, da cruz, da esperança, da dignidade das coisas civis, da consolação de
consciências em árduas tentações. Por isso Gérson e alguns outros teólogos se
queixaram energicamente dizendo que eram impedidos por essas rixas em torno de
tradições, de sorte que não podiam dedicar-se a um gênero melhor de doutrina.
Também Agostinho proíbe onerar as consciências com tais observâncias, e
sabiamente adverte a Januário para que esteja ciente de que devem ser
observadas como coisas indiferentes. É assim que se expressa.
Por essa razão não
deve parecer que os nossos tomaram em mãos esse assunto irrefletidamente ou por
ódio aos bispos, como alguns erroneamente suspeitam. Houve grande necessidade de
advertir as igrejas quanto àqueles erros, que tinham nascido de tradições mal
compreendidas. Pois o evangelho compele a instar, na igreja, pela doutrina da
graça e da justiça da fé. Essa doutrina, todavia, não pode ser entendida, se os
homens pensam que merecem graça por observâncias de sua própria escolha.
Portanto, ensinaram
assim: que pela observância de tradições humanas não podemos merecer graça ou
satisfazer por pecados. Razão por que não se deve pensar que tais observâncias
sejam culto necessário. Acrescentam testemunhos da Escritura. Cristo, em Mt 15,
desculpa os apóstolos, que não haviam observado a tradição costumeira, a qual,
contudo, era considerada coisa indiferente e estava relacionada com as lavagens
da lei. Diz ele: "Em vão me adoram com preceitos de homens." Não
exige, por conseguinte, culto inútil. E pouco depois acrescenta: "Não é o
que entra pela boca o que contamina o homem:" (Mt 15,11) Da mesma forma em
Rm 14 (v. 17): "Porque o reino de Deus não é comida nem bebida." Cl 2
(v.16): "Ninguém vos julgue por causa de comida, bebida, sábado ou dia de
festa." Em atos 15 (v. a) diz Pedro: "Por que tentais a Deus, pondo
sobre a cerviz dos discípulos um jugo que nem nós pudemos suportar, nem nossos
pais? Mas cremos que somos salvos pela graça de nosso Senhor Jesus Cristo, como
também eles." Aqui Pedro proíbe onerar as consciências com mais ritos
ainda, quer sejam de Moisés, quer de outros. E 1 M 4 chama a proibição de
alimentos "ensinos de demônios", pois conflita com o evangelho
instituir ou fazer tais obras a fim de por elas merecer a graça, ou como se não
pudesse existir justiça cristã sem tal culto.
Aqui os adversários
fazem a objeção de que os nossos proíbem a disciplina e a mortificação da
carne, a exemplo de Joviniano. Outra, porém, é a coisa que se encontra nos
escritos dos nossos. Pois sempre ensinaram, com respeito à cruz, ser necessário
que os cristãos suportem aflições. Ser exercitado em multifárias aflições e
crucificado com Cristo, eis a mortificação verdadeira, séria e não simulada.
Ensinam, além
disso, que todo cristão deve exercitar e dominar-se mediante disciplina ou
exercícios corporais e labores de modo tal, que a saciedade ou a indolência não
o estimulem ao pecado, não a fim de merecer remissão de pecados ou satisfazer
por pecados mediante aqueles exercícios. E é preciso insistir sempre nessa
disciplina corporal, não só em poucos e determinados dias, mas conforme
preceitua Cristo: "Acautelai-vos, para que os vossos corações não sejam
sobrecarregados com orgia." (Lc 21,34) Também: "Esta casta de demônio
não se expede senão por meio de jejum e oração." (Mt 17,21) E Paulo diz:
"Esmurro o meu corpo e o reduzo à escravidão." (1 Co 9,27) Aí mostra
claramente que castiga seu corpo não no intuito de por essa disciplina merecer
remissão de pecados, mas a fim de manter o corpo em sujeição e idôneo para as
coisas espirituais e o cumprimento dos deveres de acordo com sua vocação. Por
isso não se condenam os jejuns em si, mas tradições que prescrevem certos dias
e determinados alimentos, com perigo para a consciência, como se tais obras
fossem culto necessário.
Conserva-se,
todavia, entre nós, a maior parte das tradições, como as perícopes na missa,
dias santos, etc., que fazem com que haja ordem na igreja. Ao mesmo tempo,
entretanto, os homens são advertidos de que tal culto não justifica diante de
Deus, e que não se deve fazer pecado de tais coisas, se foram omitidas sem
escândalo. Essa liberdade em matéria de ritos humanos não a desconheceram os
Pais. Pois no Oriente se celebrava a Páscoa em tempo diverso do de Roma, e
quando os romanos, em razão dessa dessemelhança, acusaram o Oriente de cisma,
foram advertidos por outros no sentido de que não era necessário fossem tais
costumes iguais em toda a parte. E Irineu diz: A dissonância no jejum não
dissolve a consonância na fé". E o papa Gregório indica, na Distinctio 12,
que tal dessemelhança não fere a unidade da igreja. E na História Tripartida,
livro nono, coligem-se muitos exemplos de ritos dessemelhantes,
acrescentando-se as palavras: "Não foi intenção dos apóstolos estabelecer
leis a respeito de dias santos, mas pregar boa conduta e piedade".
Artigo 27 - Dos
Votos Monásticos
O que entre nós se
ensina a respeito de votos monásticos entende-se melhor quando se recorda qual
foi o estado dos mosteiros, quantas coisas, contrárias aos cânones, aconteciam,
diariamente, nos próprios mosteiros. No tempo de Agostinho eram colégios
livres; depois, corrompida a disciplina, em toda a parte se adicionaram votos,
a fim de que a disciplina fosse restaurada, como quem num planejado sistema
carcerário.
Além dos votos,
adicionaram-se, aos poucos, muitas outras observâncias. E essas cadeias foram
postas em muitos, contrariamente aos cânones, antes da justa idade. Muitos
entraram nesse gênero de vida por engano, pois, ainda que não lhes faltasse
idade, todavia lhes minguou juízo quanto às suas forças. Os que assim se
enredavam, eram coagidos a permanecer, ainda que alguns se poderiam ter
libertado com a ajuda dos cânones. E isso aconteceu mais ainda em conventos
femininos do que nos de monges, conquanto se devera ter tratado o sexo mais
frágil com maior consideração. Esse rigor desagradou a muitos homens de bem
antes de nossos tempos, quando viam que mocinhas e rapazinhos eram jogados em
mosteiros por causa de sustento. Viam que infelicidade esse procedimento
trazia, que escândalos gerou, que laços eram lançados Às consciências.
Doía-lhes ver a autoridade dos cânones totalmente negligenciada e desprezada em
coisa de tamanho perigo. A esses males se acrescentava uma persuasão tal sobre
os votos, que, consta, em tempos anteriores desagradou também aos próprios
monges, pelo menos aos que foram mais sábios.
Diziam que votos
eram iguais ao batismo; ensinavam merecer-se com esse gênero de vida a remissão
dos pecados e a justificação diante de Deus. Mais ainda: acrescentavam até que
a vida monástica não só merecia a justiça diante de Deus, mas coisa ainda além
disso, pois que nela se observavam não apenas os mandamentos, senão ainda os
conselhos evangélicos. Dessa maneira persuadiam aos homens que a profissão
monástica era muito melhor do que o batismo, que a vida monástica era mais
meritória do que a vida dos magistrados, dos pastores e de outros, semelhantes,
os quais, sem exercícios religiosos de sua própria inventiva, vivem para a sua
vocação de acordo com os mandamento de Deus. Nada disso pode ser negado, pois
está em seus livros.
Que aconteceu
depois nos mosteiros? Antigamente eram escolas de letras sagradas e outras
disciplinas úteis para a igreja, e delas se tomavam pastores e bispos. Agora a
coisa é diferente. E não é preciso dizer o que é notório. Antigamente pessoas
se juntavam nos mosteiros para aprender: agora imaginam que esse gênero de vida
foi instituído a fim de se merecer graça e justiça. Pregam, na verdade, que é o
estado da perfeição, e o põe muito acima de todos os outros gêneros de vida
ordenados por Deus. Dissemos essas coisas sem fazer odiosas exagerações, a fim
de que se possa entender melhor a doutrina dos nossos a respeito dessa questão.
Em primeiro lugar,
concernente aos que casam, ensinam ser lícito contraírem matrimônio quantos não
são idôneos para o celibato, porque votos não podem anular uma ordenação e
mandamento de Deus. Ora, o seguinte é mandamento de Deus: "Por causa da
impureza, cada um tenha a sua própria esposa". (1 Co7,2) E não é apenas
mandamento; também a criação e ordenação obriga ao matrimônio os que não são
excetuados por singular obra de Deus, segundo a palavra: "Não é bom que o
homem esteja só." (Gn 2,18) Por isso não pecam os que obedecem a esse
mandamento e ordenação de Deus.
Que se pode objetar
a isso? Exagere alguém a obrigação do voto quanto queira; não poderá fazer,
todavia, com que o voto ab-rogue o mandamento de Deus. Os cânones ensinam que
em todo voto está excetuado o direito do superior; por isso, muito menos valem
esses votos contra os mandamentos de Deus.
Se não houvesse
nenhuma razão por que se pudesse modificar a obrigação de votos, deles também
não teriam dispensado os romanos pontífices. Pois não é lícito ao homem
rescindir obrigação que é simplesmente de direito divino. Mas os romanos
pontífices prudentemente sentenciaram que se deve observar eqüidade nessa
obrigação. Lê-se, por isso, que muitas vezes dispensaram de votos. Pois é
conhecida a história do rei de Aragão (1134-1137), que foi chamado de volta de
um mosteiro. E não faltam exemplos em nosso tempo.
Em segundo lugar,
por que os adversários acentuam ao exagero a obrigação ou o efeito do voto,
enquanto silenciam sobre a natureza do voto, que deve dizer respeito a coisa
possível, deve ser voluntário, e assumido espontânea e refletidamente? Ora, de
que modo a castidade perpétua está no poder do homem é coisa que não se ignora.
E quantos são os que fizeram voto espontânea e deliberadamente? Mocinhas e
rapazinhos, antes de terem a capacidade de julgar, são persuadidos a fazerem
voto, e vez que outra até são coagidos. Razão por que não é justo discutir com
tantã rigidez sobre a obrigação, visto concederem todos que é contra a natureza
do voto fazer promessa não-espontânea e irrefletida.
Muitos cânones
anulam votos feitos antes da idade de quinze anos, porque parece que antes
dessa idade não há suficiente capacidade para formar juízo que possa decidir
sobre a vida inteira. Outro cânone, fazendo concessão ainda maior à fragilidade
humana, acrescenta alguns anos. Proíbe fazer voto antes de dezoito anos de
idade. Seja qual for o cânone que decidimos seguir, a maior parte tem razão que
justifica o abandono dos mosteiros, porque a maioria fez voto antes dessa
idade.
Por último, ainda
que se pudesse censurar a violação do voto, não é evidente, todavia, seguir-se
sem mais que o casamento de tais pessoas deva ser dissolvido. Agostinho nega
que se deva dissolvê-lo, 27., quaestio I, capítulo Nuptiarum. E sua autoridade
é considerável, ainda que outros, posteriormente, julgaram de maneira diversa.
Conquanto pareça,
por conseguinte, que o mandamento de Deus a respeito do matrimônio a muitos
liberta dos votos, os nossos, todavia, apresentam ainda outra razão para
mostrar que são nulos. Porque todo culto a Deus instituído por homens, sem
mandamento de Deus, e escolhido para merecer a justificação e a graça, é ímpio,
como diz Cristo: "Em vão me adoram com preceitos de homens." (Mt
15,9) E Paulo em toda a parte ensina que não se deve buscar a justiça por
intermédio de observâncias e cultos nossos inventados por homens, mas que ela
vem pela fé aos que crêem serem recebidos por Deus na graça por causa de
Cristo.
Consta, porém,
haverem os monges ensinado que exercícios religiosos de própria inventiva
satisfazem pelos pecados e merecem a graça e a justificação. Que outra coisa é
esta senão diminuir a glória de Cristo e obscurecer e negar a justiça da fé?
Segue-se, portanto, que esses votos costumeiros foram cultos ímpios, razão por
que são mulos. Pois um voto ímpio e feito contra os mandamentos de Deus não tem
validade. Como diz o cânone, jamais deve um voto ser vínculo de iniqüidade.
Diz Paulo: "De
cristo vos desligastes vós que procurais justificar-vos na lei, da graça
decaístes." (Gl. 5,4) Portanto, os que querem ser justificados por votos,
perdem a Cristo e decaem da graça. Pois também aqueles que atribuem a
justificação aos votos, atribuem às próprias obras aquilo que, propriamente,
pertence à glória de Cristo. E não se pode negar haverem os monges ensinado que
eram justificados e mereciam a remissão dos pecados por seus votos e
observâncias. Na verdade, inventaram coisas ainda mais absurdas: gloriaram-se
de que partilhavam suas obras a outros. Se alguém quisesse aqui exagerar
odiosamente, quanta coisa poderia coligir de que os próprios monges já se
envergonham! Além disso, persuadiram os homens de que exercícios religiosos de
própria inventiva eram o estado da perfeição cristã. Não é isso atribuir a
justificação às obras? Não é leve escândalo na igreja propor ao povo
determinado culto inventado, sem mandamento, por homens, e ensinar que tal
culto justifica os homens. Porque a justiça da fé, cujo ensino é obrigação
máxima na igreja, é obscurecida quando os olhos dos homens são ofuscados com
aqueles espantosos cultos de anjos, aquela simulação de pobreza humilde e
celibato.
Além disso, os
mandamentos de Deus e o verdadeiro culto a Deus não obscurecidos quando os
homens ouvem que somente os monges estão no estado da perfeição. Pois perfeição
cristã é temer seriamente a Deus e ao mesmo tempo ter grande fé e confiar que
por causa de Cristo temos um Deus reconciliado, pedir, e esperar com certeza,
auxílio de Deus em todos os deveres de nossa vocação, e, entrementes, praticar,
com diligência, boas obras na vida externa e servir a vocação. É nessas coisas
que consiste a verdadeira perfeição e o verdadeiro culto a Deus, não em
celibato, ou mendicância, ou vestimenta miserável. Assim, o povo concebe muitas
opiniões perniciosas a partir daquelas falsas preconizações da vida monástica.
Ouve louvores imoderados do celibato; por isso vive de má consciência no
matrimônio. Ouve que apenas os mendicantes são perfeitos; por isso é de má
consciência que mantém suas posses, é com ofensa à consciência que negocia.
Ouve que não vingar-se é conselho evangélico; por isso alguns não se receiam de
fazer vingança na vida particular, pois ouvem que a vindita é proibida por um
conselho, não por um mandamento. De outro lado, outros erram mais ainda quando
julgam que toda magistratura, todo ofício civil é indigno do cristão e conflita
com o conselho evangélico.
Encontram-se, em
leituras, exemplos de homens que, abandonando o matrimônio e a administração da
coisa pública, se retiraram a mosteiros. A isso chamavam fugir do mundo e
buscar um gênero santo da vida. Não viam que a Deus se deve servir de acordo
com os mandamentos que ele mesmo deu, não segundo preceitos inventados pelos
homens. Gênero de vida bom e perfeito é o que tem mandamento de Deus. A
respeito dessas coisas é necessário admoestar os homens.
E antes dos tempos
presentes Gérson ( + 1429) criticou o erro dos monges quanto à perfeição e
testifica que em seu tempo era novidade isso de dizer-se que a vida monástica é
estado de perfeição.
Tão grande número
de opiniões ímpias se prende aos votos: que justificam, que são perfeição
cristã, que os monges observam os conselhos e os preceitos, que eles têm obras
além das que se esperam do cristão normal. Tudo isso, já que é falso e
inconsistente, torna os votos nulos.
Artigo 28 - Do
Poder Eclesiástico
Sobre o poder dos
bispos houve, no passado, grandes discussões em que alguns impropriamente
confundiram o poder eclesiástico e o poder da espada. Dessa confusão nasceram
guerras muito grandes e tumultos, enquanto os pontífices, apoiados no poder das
chaves, não só instituíram novos cultos e oneraram as consciências com a
reserva de casos e violentas excomunhões, mas também se lançaram à empresa de
transferir reinos do mundo e tirar o poder dos imperadores. Homens piedosos e
eruditos há muito repreenderam esses erros na igreja. Por isso os nossos, para
instruir as consciências, se viram compelidos a mostrar a diferença entre o
poder eclesiástico e o poder político, e ensinaram que, por causa do mandamento
de Deus, ambos devem ser escrupulosamente venerados e honrados como os maiores
benefícios de Deus na terra.
Os nossos pensam
assim: o poder das chaves, ou poder dos bispos, é, segundo o evangelho, o poder
ou ordem de Deus de pregar o evangelho, remitir reter pecados e administrar os
sacramentos. Pois Cristo envia os apóstolos com essa ordem: "Assim como o
Pai me enviou, eu também vos envio. Recebei o Espírito Santo. Se de alguns
perdoardes os pecados, são-lhes perdoados; se lhos retiverdes, são
retidos." (Jó 20,21-23). E Mc 16 (v. 16): "Ide, pregai o evangelho a
toda criatura", etc.
Esse poder é
exercido apenas através do ensino ou pregação do evangelho e a administração dos sacramentos a muitos ou a
indivíduos, de acordo com a vocação. Pois o que se concede aí não são coisas
corporais, porém eternas, a justiça eterna, o Espírito Santo, a vida eterna.
Isto só se pode alcançar pelo ministério da palavra e dos sacramentos, como diz
Paulo: "O evangelho é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que
crê." (Rm 1,16) E Sl 119 (v.25): "A tua palavra me vivifica". Visto,
pois, o poder eclesiástico conceder coisas eternas e ser exercido apenas pelo
ministério da palavra, embaraça a administração política tão pouco quanto a
estorva a arte de cantar. Pois a administração política trata de coisas
diferentes das do evangelho. O magistrado defende não as mentes, porém os
corpos e as coisas corpóreas contra manifestas injustiças, e reprime os homens
com a espada e penas temporais. O evangelho defende as mentes contra opiniões
ímpias, contra o diabo e a morte eterna.
Não se devem
confundir, por isso, o poder eclesiástico e o civil. O poder eclesiástico tem
sua própria incumbência: ensinar o evangelho e administrar os sacramentos. Não
deve invadir ofício alheio, transferir reinos do mundo, ab-rogar as leis dos
magistrados, abolir a obediência legítima, impedir julgamentos a respeito de
quaisquer ordenações ou contratos civis, prescrever leis aos magistrados sobre
a forma de constituir a coisa pública. Conforme diz Cristo: "O meu reino
não é deste mundo". (Jó 18,36) Também: "Quem me constituiu juiz ou
partidor entre vós?" (Lc 12,14) E Paulo diz Fp 3 (v.20): " A nossa
pátria está nos céus." 2 Co 10 (v.4): "As armas da nossa milícia não
são carnais, e sim, o poder de Deus para destruir cogitações, etc."
Dessa maneira os
nossos fazem distinção entre os ofícios de ambos os poderes, e ordenam que
ambos sejam honrados e reconhecidos como dom e benefício de Deus.
Se bispos têm algum
poder civil, não o têm como bispos, através do mandato do evangelho, mas por
direito humano, dado por reis e imperadores para a administração de seus bens
civis. Essa função, entretanto, é diversa da do ministério do evangelho.
Quando, pois, se
indaga sobre a jurisdição dos bispos, deve distinguir-se entre a autoridade
civil e a jurisdição eclesiástica. Assim, segundo o evangelho, ou, como se diz,
de direito divino, compete aos bispos, como bispos, isto é, àqueles que estão
incumbidos do ministério da palavra e dos sacramentos, essa jurisdição: perdoar
pecados, rejeitar doutrina que dissente do evangelho e excluir da comunhão da
igreja os ímpios cuja impiedade é conhecida. Todavia, sem força humana, mas com
a palavra. Nisso as igrejas necessariamente e de direito divino devem
prestar-lhes obediências, segundo a palavra: "Quem vos der ouvidos,
ouve-me a mim". (Lc 10,16)
Todavia, quando
ensinam ou estabelecem algo contra o evangelho, então as igrejas têm mandamento
de Deus que proíbe obedecer. Mt 7 (v.15): "Acautelai-vos dos falsos
profetas." Gl 1 (v.8): "Se um anjo do céu pregar outro evangelho,
seja anátema." 2 Co 13 (v.8): "Porque nada podemos contra a verdade,
senão em favor da própria verdade". Também: "Dada nos é autoridade
para edificação, não para destruição." (2 Co 13, 10). Assim também
preceituam os cânones II, questio VII, nos capítulos Sacerdotes e Oves. E
Agostinho diz, na epístola contra Petiliano: "Também com os bispos
católicos não se deve concordar caso suceda que errem ou pensem algo que seja
contrário às Escrituras canônicas de Deus."
Se têm algum outro
poder ou jurisdição para conhecer de certas causas, por exemplo em questões de
casamento ou dízimo, etc., têm-no por direito humano. Quando faltam os
ordinários, os príncipes são obrigados, mesmo contra a sua vontade, a
pronunciar direito aos súditos, para a manutenção da paz pública.
Discute-se, além
disso, sobre se os bispos ou pastores têm o direito de instituir cerimônias na
igreja e fazer leis sobre alimento, feriados, graus dos ministros ou ordens,
etc. Os que atribuem esse direito aos bispos, alegam o testemunho: "Tenho
ainda muito que vos dizer, mas vós não o podeis suportar agora; quando vier,
porém, o Espírito da verdade, ele vos ensinará toda a verdade." (Jó 16,
12.13) Alegram também o exemplo dos apóstolos, que ordenaram abstenção do
sangue e do sufocado (At 15,20.29). Alegam o sábado, que foi mudado para o
domingo, contrariamente ao Decálogo, como parece. Nenhum exemplo é mais
enfatizado que a mudança do sábado. Contendem que é grande a autoridade da
igreja, pois que dispensou de um preceito do Decálogo.
Mas a respeito
dessa questão os nossos ensinam assim: que os bispos não têm poder para
estabelecer algo contra o evangelho, conforme se mostrou acima. É o que também
declaram os cânones em toda a Distinção nona. Além disso, é contrário à
Escritura criar tradições, a fim de pela observância delas satisfazermos pelos
pecados ou merecermos ser justificados. Pois a glória do mérito de Cristo é
lesada quando julgamos ser justificados mediante tais observâncias. Mas consta
que por causa dessa persuasão na igreja as tradições cresceram quase ao
infinito, enquanto era sufocada a doutrina da fé a da justiça da fé. Porque,
uns após outros, mais feriados foram estabelecidos, mais jejuns prescritos, e
novas cerimônias e novas ordens instituídas, porque os autores de tais coisas
julgavam que mereciam a graça por essas obras. Assim aumentaram, anteriormente,
os cânones penitenciais, e deles ainda vemos alguns vestígios nas satisfações.
Da mesma forma os
autores das tradições agem contra o mandamento de Deus quando põem pecado em
alimentos, dias e coisas semelhantes, e oneram a igreja com a escravidão da
lei, como se, para merecer a justificação, fosse necessário que existisse entre
os cristãos um culto semelhante ao Levítico, de cuja ordenação Deus houvesse
incumbido os apóstolos e os bispos. Pois é assim que escrevem alguns, e parece
que os pontífices em parte foram enganados com o exemplo da lei mosaica. Daí
provêm cargas como essas: que é pecado mortal fazer trabalho manual em dias
santos, ainda quando não haja ofensa a outros; que certos alimentos poluem a
consciência; que jejuns, não os naturais, mas os aflitivos, são obras que
reconciliam a Deus; que é pecado mortal omitir as horas canônicas; que em caso
reservado um pecado não pode ser perdoado a menos que haja autoridade do
reservante, quando os próprios cânones falam aqui não da reserva da culpa, mas
da reserva da pena eclesiástica.
De onde têm os
bispos o direito de impor tais tradições às igrejas para envidar as
consciências, quando Pedro proíbe impor jugo aos discípulos, e Paulo diz que o
poder lhes foi dado para edificação, não para destruição? Por que multiplicam
os pecados mediante tais tradições?
Existem, porém,
claros testemunhos que proíbem fazer tradições para reconciliar a Deus ou como
se fossem necessárias para a salvação. Diz Paulo, em Cl 2 (v.16): "Ninguém
vos julgue por causa de comida, bebida, dia de desta, lua nova ou
sábados." Também: "Se morrestes com Cristo para os rudimentos do
mundo, por que, como se vivêsseis no mundo, fazeis ordenanças: não manuseies,
não proves, não toques? Toda estas coisas, com o uso, se destroem e são
preceitos e doutrinas dos homens e têm aparência de sabedoria". (Cl 2,
20-23) Em Tito 1(v. 14): "Não se ocupem com fábulas judaicas, nem com
mandamentos de homens desviados da verdade."
Em Mt 15 (v. 14)
diz Cristo, a respeito daqueles que exigem tradições: "Deixai-os: são
cegos e guias de cegos". E reprova tais cultos: "Toda planta que meu
Pai celestial não plantou, será arrancada." (Mt 15,13)
Se os bispos têm o
direito de onerar as consciências com tais tradições, então por que a Escritura
proíbe tantas vezes estabelecer tradições? Por que lhes chama doutrinas de
demônios? Foi em vão que o Espírito Santo preveniu contra isso?
Segue-se, portanto,
que, visto as ordenações instituídas como necessárias, ou com a idéias de
merecer a justificação, conflitarem como evangelho, não é lícito aos bispos
instituir tais cultos ou exigí-los como necessários. Pois é necessário
preservar nas igrejas a doutrina da liberdade cristã de que não é necessária a
servidão da lei para a justificação, conforme está escrito em Gálatas:
"Não vos submetais de novo a jugo de escravidão". (Gl 5,1) É
necessário preservar o Artigo principal do evangelho: que alcançamos a graça
pela fé em Cristo, não por determinadas observâncias ou por cultos instituídos
pelos homens.
Que se deve pensar,
portanto, do domingo e de similares ritos das igrejas? A isso respondem os
nossos ser lícito aos bispos ou pastores fazer ordenações para que as coisas
sejam feitas com ordem na igreja, não a fim de por elas satisfazermos por
pecados ou se obrigarem as consciências a que as tenham na conta de cultos
necessários. Assim Paulo ordena que na congregação as mulheres velem a cabeça e
que os intérpretes na igreja sejam ouvidos um após outro. (1 Co 11,5s)
É conveniente que
as igrejas, por causa do amor e da tranqüilidade, obedeçam a tais ordenações e
as conservem até onde um não ofenda o outro, fazendo-se, pelo contrário, tudo
nas igrejas com ordem e sem tumulto. Contudo, de maneira tal, que não se onerem
as consciências, de forma que pensem serem coisas necessárias para a salvação e
julguem que pecam quando as violam sem escândalo. Assim como ninguém dirá pecar
a mulher que, sem escândalo, se apresenta em público de cabeça descoberta.
Tal é a observância
do domingo, da Páscoa, do Pentecostes e de feriados e ritos semelhantes. Pois é
incorreto o pensamento dos que julgam que a observância do domingo em lugar do
sábado foi instituída como necessária, pela autoridade da igreja. Foi a
Escritura que ab-rogou o sábado, não a igreja. Porque depois de revelado o
evangelho, podem omitir-se todas as cerimônias mosaicas. Contudo, visto que era
necessário estabelecer um dia determinado, a fim de que o povo soubesse quando
devia reunir-se, é manifesto que a igreja destinou o domingo para esse fim, e
parece que a solução agradou tanto mais por esta razão adicional: terem os
homens um exemplo de liberdade cristã e saberem que nem o sábado nem qualquer outro
dia é observância necessária.
Há discussões
inauditas sobre a mudança da lei, sobre cerimônias da nova lei, sobre a mudança
do sábado. Tudo isso originou-se da falsa persuasão de que na igreja devia
haver culto semelhante ao levítico, e de que Cristo comissionou os apóstolos e
os bispos de inventarem novas cerimônias necessárias para a salvação. Esses
erros se insinuaram na igreja, porque não se ensinou de maneira suficientemente
clara a justiça da fé. Alguns sustentam que a observância do domingo na verdade
não é de direito divino, mas como que de direito divino. Prescrevem, com
respeito a dias santos, em que medida é lícito trabalhar. Que outra coisa são
tais disputas senão laços para as consciências? Pois ainda que procuram mitigar
as tradições, contudo jamais se pode alcançar a eqüidade enquanto permanece a
opinião de que são necessárias. E essa opinião necessariamente permanece onde
se ignora a justiça, da fé e a liberdade cristã.
Os apóstolos
ordenaram abster-se do sangue, etc. Quem observa isso hoje em dia? E contudo
não pecam os que deixam de observá-lo, porque os próprios apóstolos não
quiseram onerar as consciências com tal escravidão, mas apenas o proibiram por
algum tempo, a fim de evitar escândalo. Pois no decreto deve considerar-se a
perpétua vontade do evangelho.
Dificilmente algum
cânone é observado com exatidão, e diariamente muitos se tornam obsoletos, até
entre os que defendem as tradições. Nem se pode prestar auxílio às consciências
a menos que se mantenha a eqüidade de saber que as tradições são observadas sem
serem tidas na conta de necessárias e que as consciência não são feridas, ainda
que o uso dos homens mude em tal coisa.
Os bispos,
entretanto, poderiam manter facilmente a obediência legitima, se não
insistissem na observância de tradições que não se podem guardar de boa
consciência. Mas agora exigem o celibato, e a ninguém recebem a menos que jure
não querer ensinar a pura doutrina do evangelho. As nossas igrejas não pedem
que os bispos, para restaurar a concórdia, abram mão da honra deles, ainda que
a bons pastores conviria fazê-lo. Pedem apenas que revoguem cargas injustas que
são novas e foram recebidas contrariamente ao costume da igreja católica.
Talvez de início essas constituições hajam tido razões plausíveis, as quais, todavia,
em tempos ulteriores já não são congruentes. Também é manifesto que algumas
foram recebidas devido a erro. Conviria, por isso, à clemência dos bispos
mitigá-las agora, pois tal mudança não quebra a unidade da igreja. Porque
muitas tradições humanas foram mudadas com o passar do tempo, conforme mostram
os próprios cânones. Se, porém, não se pode obter uma relaxação quanto às
observâncias que não se podem cumprir sem pecados, então devemos seguir a norma
apostólica que ordena obedecer antes a Deus que aos homens.
Pedro proíbe que os
bispos dominem e coajam as igrejas. O de que se trata agora não é que os bispos
abram mão de sua dominação. Pede-se, isto sim, apenas o seguinte: que permitam
seja o evangelho ensinado de maneira pura e relaxem algumas poucas observâncias
que não se podem observar sem pecado. Se não fizerem isso, então vejam lá eles
mesmos como responderão perante Deus pelo fato de com essas teimosia darem
causa a cisma.
Conclusão
Recenseamos os Artigos
precípuos sobre os quais, manifestamente, há controvérsia. Embora se pudesse
haver falado de maior número de abusos, incluímos, contudo, para evitar maiores
delongas, apenas os principais. Houve grandes queixas sobre indulgências,
peregrinações, abuso em matéria de excomunhão. As paróquias eram vexadas de
muitas maneiras por pregadores de indulgências. Infinitas contendas houve entre
pastores e monges sobre direito paroquial, confissões, sepultamentos e com
respeito a inumeráveis outras coisas. Passamos por alto assuntos dessa
natureza, para que os pontos principais dessa matéria, concisamente propostos,
mais facilmente pudessem ser entendidos. E nada se disse ou recenseou aqui no
intuito de insultar a quem quer que fosse. Mencionou-se apenas aquilo que,
segundo nos parecia, era necessário dizer, a fim de que se pudesse compreender
que, em doutrina e cerimônias, entre nós nada se recebeu que seja contra a
Escritura ou a igreja católica. Porque é manifesto que nos acautelamos
diligentissimamente para que em nossas igrejas não se insinuassem dogmas novos
e ímpios.
Seguindo o edito da
Majestade Imperial, quisemos apresentar os Artigos acima, para que neles se
mostrasse nossa confissão e se discernisse a suma da doutrina dos que ensinam
entre nós. Caso falte algo nesse confissão, estamos prontos, se Deus quiser, a
dar informação mais ampla, segundo as Escrituras.
De vossa Majestade Imperial súditos fiéis:
João, duque da Saxônia, eleitor
Jorge, Margrave de Brandenburg
Ernesto, de próprio punho
Filipe, Landgrave de Hesse, subscreveu
João Frederico, Duque da Saxônia
Francisco, Duque de Luneburg
Wolfgang, Príncipe de Anhalt
Senado e magistratura de Nurembergue
Senado de Reutlingen.
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